Uma análise sobre o viés racista e patriarcal das traduções bíblicas
Em novo ensaio, linguista cristã propõe tradução mais fiel ao hebraico original, e resgata o protagonismo da mulher negra na Bíblia

O Cântico dos Cânticos é um dos livros mais românticos da Bíblia — uma coletânea de poemas intensos sobre o amor, o desejo e o erotismo das experiências humanas. Nele, a voz da mulher é central: uma personagem que fala com liberdade sobre o próprio corpo, afetos e autonomia. Em O amor não está à venda, a linguista Ana Azevedo Bezerra Felicio, autora negra e cristã, resgata esse protagonismo feminino dos Cânticos por meio de uma releitura inédita, ao confrontar o viés racista e patriarcal presente em traduções bíblicas.
Com base em estudos linguísticos e teológicos, a escritora analisa como interpretações preconceituosas reforçam apagamentos simbólicos. Um exemplo-chave é a frase “sou negra, mas formosa”, que aparece em algumas versões do texto. Para a especialista, a conjunção adversativa “mas” carrega uma carga racista, por sugerir que negritude e beleza seriam atributos opostos em vez de complementares. Assim, ela propõe uma tradução mais fiel ao hebraico original, a fim de evidenciar a mulher retratada como sujeito ativo, belo e desejado: “sou negra e formosa”.
Precisamos entender que há uma ambiguidade inerente ao hebraico que possibilita traduzir a partícula we/vav tanto por “e” quanto por “mas”. A tradução com conjunção adversativa não é a mais provável à luz do que foi explicado e, por isso, a maioria das traduções mais recentes da Bíblia para o português usa “e” em lugar de “porém/mas”. Em uma leitura sujeita a ser imbuída de preconceitos de nossa sociedade brasileira, a princípio pode parecer que a mulher esteja se desculpando por sua cor, mas vimos que, na realidade, ela está ostentando a cor de sua pele. (O amor não está à venda, p. 66)
Neste ensaio potente, publicado pela Editora Mundo Cristão, além de discutir aspectos técnicos de tradução, Ana Azevedo entrelaça teoria e poesia para abordar temas como: tradição teológica cristã, teologia feminista, racismo estrutural, representatividade negra no cristianismo, espiritualidade, mutualidade nas relações e tabus sobre sexualidade. Sua leitura do Cântico dos Cânticos afirma que o amor ali descrito é encarnado, recíproco e relacional — avesso à lógica utilitarista e aprisionadora do capitalismo, que mede tudo por poder ou status social. Um amor em Cristo, que devolve à mulher sua centralidade nas Escrituras Sagradas e celebra o corpo humano em seus diversos formatos e cores.
Ficha técnica:
Título: O amor não está à venda
Autora: Ana Azevedo Bezerra Felicio
Editora: Mundo Cristão
ISBN: 978-65-5988-441-4
Edição: 1ªed., 2025
Gênero: Espiritualidade, Teologia Bíblica, Comentário Bíblico
Páginas: 160
Preço: R$ 54, 90
Onde encontrar: Amazon
Sobre a autora:

Ana Azevedo Bezerra Felicio é doutora em Linguística com especialização em Estudos Clássicos e em Antropologia Social, e mestra e bacharela em Linguística pela Unicamp. Possui estágio doutoral na Universidade de Nova York. É uma das fundadoras do Projeto Agostinhas, em que mulheres cristãs e negras fomentam a discussão do racismo e sua relação com a fé cristã evangélica. Está envolvida na Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2), onde lidera o grupo de Estudos de Ética das Virtudes e participa da comissão de liderança do Grupo de Estudos de Letras. É casada com Leandro e juntos são membros da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em Ferraz de Vasconcelos.
Instagram: @anabezerrafelicio
Sobre a editora: Fundada em 1965, a Editora Mundo Cristão é referência na publicação de Bíblias e livros de ficção e não ficção pautados por uma postura teológica cristã equilibrada e histórica. Com um catálogo diverso, a editora promove o crescimento espiritual e pessoal de seus leitores.
Instagram: @mundocristao